segunda-feira, 18 de maio de 2009


A Máquina das Crianças - Repensando a Escola na Era da Informática - Seymour Papert


O professor Seymour Papert, um dos fundadores do laboratório de inteligência artificial do MIT (Massachussetts Institute of Technology), foi o responsável, no final dos anos sessenta, pelo desenvolvimento da linguagem Logo, na época um grande avanço para o uso da Informática na educação. Subjacente à linguagem, havia uma concepção de aprendizagem, ensino, escola e educação informalmente conhecida como “Filosofia Logo”. Em meados da década de oitenta, Papert desenvolveu o brinquedo Lego-Logo, um tipo de robótica para crianças. Em parceria com a empresa dinamarquesa Lego, introduziu motores, sensores e engrenagens nos tradicionais blocos de construção, possibilitando o controle de dinamismos através de programas simples escritos em Logo pelo aprendiz (p.173).Ainda em meados dos anos oitenta, Papert influenciou diretamente o projeto de introdução de computadores nas escolas da Costa Rica, baseado no uso do Logo. Papert sempre foi um questionador do establishment educacional, particularmente da tradição comportamentista (behaviorista). É admirador de John Dewey – filósofo norte-americano da educação e da tecnologia – e de Paulo Freire, que elogiou A Máquina das Crianças, em depoimento transcrito na contracapa da tradução brasileira.

Para entendermos melhor a presente obra, é necessário nos referirmos ao seu primeiro livro, sobre computadores e educação, publicado nos EUA em 1980 com o título Mindstorms: Children, Computers and Powerful Ideas. O neologismo Mindstorms funde duas palavras inglesas: mind (mente, intelecto, inteligência), e storm (tempestade, paixão). O novo termo leva o leitor de língua inglesa a associá-lo com a palavra brainstorm (tempestade cerebral), que denota um estado emocional, uma idéia resultante de um excitante momento de trabalho intelectual, de novas intuições. Uma tradução livre do original poderia ser Paixões do Pensamento: Crianças, Computadores e Idéias Poderosas. Na época - início dos anos oitenta, quando estavam surgindo os primeiros computadores pessoais - o livro tornou-se rapidamente a obra mais conhecida sobre o tema, cujo lançamento no Brasil só ocorreu em 1985 (Cysneiros, 1991). Esgotado, o livro foi reeditado no início deste ano nos EUA, com um novo prefácio. Embora atualmente o uso da linguagem Logo tenha arrefecido, com o lançamento de bons software de autoria, ainda existem milhões de usuários Logo em todo o planeta, utilizando versões bem diferentes das primeiras (para DOS e similares), que hoje incorporam avanços técnicos como interface gráfica tipo Windows e estrutura multimídia. Paralelamente à publicação do Mindstorms, desenvolveu-se um movimento educacional entre os usuários da linguagem, com práticas e idéias próprias. Eram conhecidos nos EUA como Logo followers, e no Brasil referidos como loguistas.Embora a Máquina das Crianças tenha sido publicado treze anos depois do Mindstorms, a linguagem Logo e sua filosofia ainda permeiam boa parte do livro, porém de modo comedido. O livro não teve o impacto do primeiro e não foi bem recebido em alguns meios acadêmicos. É composto por um prefácio e dez capítulos, abordando diversos temas relacionados ao uso de computadores pessoais na educação.

Como no Mindstorms, Papert não escreveu prioritariamente para a comunidade científica. Nas primeiras páginas, informa que seu propósito foi provocar e incentivar a imaginação do leitor, algo que ele consegue fazer muito bem. Não se esperaria de uma obra deste tipo – de tentativa de comunicação com um público amplo – citações técnicas e a objetividade impessoal de um texto acadêmico. É um livro gostoso de ler, apesar da péssima tradução brasileira.Uma das idéias que permeiam o livro é que a familiarização com computadores ligados em redes proporcionará às crianças um maior grau de independência no acesso a informações sobre o mundo, sem depender de adultos. Esta idéia certamente originou o nome do livro: o computador em rede será a máquina das crianças, a Máquina do Conhecimento.

Papert gosta de inventar novos termos, certamente um indicador da sua criatividade e da riqueza do ambiente intelectual onde tem vivido. Esta característica também se encontra na presente obra, já no título do primeiro capítulo, Yearners and Schoolers, cuja tradução brasileira deformou completamente a intenção do autor. Yearners origina-se do verbo yearn (desejar fortemente algo dificil de se realizar, como a ânsia por liberdade em pessoas que vivem em um regime autoritário); Schoolers, uma nova derivação do substantivo school (escola), que significa aproximadamente "defensores da instituição escolar na sua estrutura atual". A tradutora usou os termos fáceis "Inovadores" e "Conservadores", que possuem outros significados, tanto em inglês como em português, sem sequer mencionar os neologismos originais. Na página 43, o próprio autor usa os termos “inovações/inovadores” com significados diferentes daquele do título do capítulo um. Outra confusão com o mesmo vocábulo encontra-se na página 176: hard science foi traduzido como “ciência conservadora”. A expressão original tem um sentido muito diferente, significando ciencia sólida, estabelecida, amparada por evidências acumuladas. Uma opção seria não traduzir os neologismos, informando ao leitor as raízes lingüísticas e as prováveis intenções do autor em cada caso. Outra alternativa seria explicar os significados e criar neologismos em português (o título do capítulo em questão poderia ser algo como Inovistas vs. Escolistas). Pessoalmente, prefiro manter o original comentado, pois neologismos são escorregadios, especialmente em traduções. No mesmo capítulo, as páginas 17 e 18, abordando questões de alfabetização e leitura, também estão muito mal traduzidas, tornando a leitura difícil pelo jogo de outros neologismos mal adaptados para o português.

Para ilustrar sua tese sobre a obsolescência da escola, Papert inicia o primeiro capítulo com uma anedota que tornou-se comum nos meios educacionais. Conta a estória que se médicos e professores do século dezenove nos visitassem hoje, teriam reações bem diferentes. Os primeiros não reconheceriam as atuais salas de cirurgia, devido ao avanço da medicina, mas os professores se sentiriam à vontade se entrassem numa sala de aula cem anos depois. Embora esta anedota tenha um lado bom, ao salientar as poucas mudanças havidas neste século na estrutura da instituição escolar, considero-a inadequada em vários aspectos, pois pode deixar a impressão que os problemas da escola estão, na raiz,relacionados com a ausência de artefatos tecnológicos, especialmente de computadores, e que os professores são os principais responsáveis pelo seu “atraso”. Embora ninguém discorde de que a escola precisa atualizar-se tecnologicamente, a tese acima tem sido amplamente refutada (e.g, Cuban, 1986), aceitando-se que os problemas da Educação não serão resolvidos pela tecnologia. Até mesmo outros estudiosos dos computadores na escola (e.g. Perkins et alli, 1995, de um grupo de Harvard, universidade vizinha ao MIT) concordam que, mesmo com todas as dificuldades existentes, a instituição escolar dirigida para a educação de populações – com seus professores, livros-texto, currículos e organização escolar – constitui uma das invenções fundamentais da civilização contemporânea.Nos capítulos dois e cinco, entre outros, Papert expõe o que poderíamos chamar de "teoria introspectiva de aprendizagem", usando como ilustração exemplos autobiográficos de infância e de suas experiências como adulto. Uma das idéias centrais é que aprender deveria ser sempre algo prazeroso, evitando-se enfatizar apenas os componentes racionais do processo.

Esta perspectiva da gênese do conhecimento, de certa forma hedonista, é encontrada na história das idéias, da Filosofia antiga à Psicologia contemporânea. Está ligada ao fenômeno da curiosidade humana perante o novo, o desconhecido, até mesmo o proibido. Esta última forma de curiosidade foi recentemente tratada exaustivamente em um belo livro, bem traduzido, por Roger Shattuck (1998), um pensador da Universidade de Boston, outra vizinha do MIT. Certamente, a química intelecto-emoção, que deve ocorrer em lugares recônditos do nosso cérebro e é ainda pouco conhecida da ciência, é um dos principais ingredientes da aprendizagem mais nobre, que alguns chamam de criatividade. Criar para sí próprio, em ambientes sociais adequados, é um tipo muito especial de prazer, mais humano do que aquele que é só emoção, ou só razão. Pode estar no esporte, no vídeogame, na poesia ou na solução de um problema de matemática, e talvez seja a essência da linguagem Logo. Separar as duas coisas é uma das deformações que a escola convencional impinge às crianças, muitas vezes reforçando um processo que começa no próprio lar (especialmente em crianças que nunca souberam o que é lar, como é comum nas grandes cidades brasileiras). Numa escola comum, a destruição ou o embotamento do prazer de conhecer é algo que infelizmente ocorre com freqüência já nas primeiras séries.Não separar o emocional do intelectual é um sentimento que ele carrega há muito, desde a época em que trabalhou com Jean Piaget e sua equipe em Genebra, na década de sessenta. Papert conheceu Piaget, um dos seus autores preferidos, como professor na Sorbonne, onde doutorou-se em matemática. Outro autor sempre referido é Paulo Freire, que ensinou e publicou em Harvard, após ser expulso do Brasil pelo regime militar. Ele cita ambos em um artigo sobre Piaget, na revista TIME, em um número especial sobre as principais mentes do século (Papert, 1999).

No terceiro capítulo, Papert analisa as respostas da instituição escolar às perspectivas de mudança. Apresenta uma boa discussão sobre Instrução Assistida por Computadores (CAI), traçando suas raízes e apontando suas fraquezas. Tendo vivido a história da Informática na Educação nos EUA, ele reflete sobre sua contribuição na época, contrastando-a com a linha instrucionista desenvolvida por Patrick Suppes, outro nome pioneiro na área. No mesmo capítulo, o autor propõe uma pesquisa educacional em parceria com a escola, do ponto de vista da instituição (p.43), que nos lembra a crescente popularidade da pesquisa qualitativa em educação, com enfoque etnográfico. Em outras partes do livro, reafirma sua posição (p.ex., p.26), já explicitada no Mindstorms, de crítica ao tipo de pesquisa sobre aprendizagem encontrada em certos setores da comunidade acadêmica norte-americana, sem uma perspectiva epistemológica sólida.No capítulo quatro, discute a questão dos professores, reconhecendo, em retrospectiva, que eles não são o maior obstáculo à transformação da escola, e que não escreveu o Mindstorms com os professores em mente (p.57). Sua maneira casual de tratar certos assuntos, sobre os quais já existem bons trabalhos, certamente irritou pesquisadores como o inglês Neil Mercer, da Open University (1995), que em uma curta resenha referiu-se a Papert como “...an archetypal North American born-again computer buff”, embora reconhecendo, no final, que o livro é estimulante e merece ser lido, pois mexe com idéias estabelecidas.

No restante do livro, Papert explora a junção potencial de duas tendências do mundo contemporâneo, uma tecnológica e outra epistemológica. De um lado, as tecnologias da informação estão abrindo, em uma escala sem precedentes, oportunidades para a melhoria dos ambientes de aprendizagem; do outro, muita mudança vem ocorrendo no pensamento sobre a construção individual do conhecimento (no capítulo seis, a antropóloga cognitiva Jean Lave, da didática da Matemática, é uma das poucas referências elogiosas de Papert a um pesquisador educacional). Uma leitura atenta revela um colorido autobiográfico em quase todo o livro. Papert lembra a criança que existe em todos nós e que ele não sufocou (p.36), mantendo-a viva em sua trajetória profissional, deixando transparecer seu lado profundamente humano. Muito do que Papert defende vem sendo dito e tratado, há bastante tempo, por pensadores que conhecem bem a educação brasileira e seus problemas. Uma de suas idéias - tornar o estudante o sujeito do processo de aprendizagem, não o objeto (p.20) - é algo que há muito vem sendo preconizado em várias parte do mundo, desde Montessori e Freinet.É necessária uma perspectiva de Educação Comparada para se apreciar devidamente a tese de que existem fortes sentimentos de insatisfação, dentro da sociedade como um todo, com os sistemas educacionais (não esqueçamos, ele escreve numa ótica norte-americana e européia, apesar de muito viajado). O Brasil, como muitos outros países em desenvolvimento, possui histórias e problemas diversos. Temos uma boa escola particular, que vem se adaptando rapidamente às mudanças tecnológicas, e uma escola pública com deficiências estruturais tão grandes, que se atingíssemos a situação “insatisfatória” das escolas dos países desenvolvidos (quanto ao nível de formação de professores, instalações físicas e infra-estrutura, alocação de recursos, etc.), estaríamos em um mar de rosas.

Voltando à tradução, em muitas passagens existem problemas sérios de falsos cognatos e de expressões idiomáticas, presentes já no segundo parágrafo da primeira página: graduate students (alunos de pós-graduação) foi traduzido por “alunos de graduação”. Um pouco mais adiante (p.13), a expressão looking at samples foi traduzida por “observar amostras’’, distante do significado original (examinar exemplos). Duas páginas à frente, o leitor ou leitora encontrará a frase “exploração vicarial” (vicarious), onde seria mais adequado “exploracão virtual”. Na página 43, administer (ministrar) foi traduzida por “administrar”. Na página 174, leading edge significa “linha de frente” e não “extremidade cortante”. Sensible (sensato, p.181) foi colocada como “sensível”; “danish” (p.187) significa dinamarquês e não “holandês”. E assim por diante.A revisão técnica também deixa muito a desejar. Como exemplos, na página 103 está escrito que “...o antropólogo cognitivo Jane Lave...”. A professora Lave, uma figura internacional, é bem conhecida na comunidade acadêmica brasileira de Psicologia Educacional. A pesquisadora Sherry Turkle, do MIT, também é referida como sendo do sexo masculino (p.132). Na década de oitenta ela já era conhecida como autora de um livro sobre Informática na Educação e hoje é internacionalmente reconhecida como uma antropóloga do ciberespaço.No final do livro, são colocadas as mesmas fontes de informação sobre Informática na Educação contidas na edição original, sem nenhuma adaptação para o Brasil, onde existem versões em português do Logo e vários grupos de pesquisa que trabalham há muito com a linguagem. Em suma, faltou, como infelizmente é comum nas traduções publicadas por várias editoras brasileiras, um trabalho conjunto editor/autor/tradutor.

Cuban, Larry (1986). Teachers and Machines: The Classroom use of Technology Since 1920. NY, Teachers College Press.Cysneiros, P.G. (1991). Resenha Crítica. Logo: Computadores e Educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília (MEC/INEP), vol.72, n.170, p.106-109, jan./abr.Mercer, N. (1995). Book Review. The Children’s Machine. British Journal of Educational Psychology, vo.65, n.2, pp. 262-263, June. Papert, S.M. (1985). Logo: Computadores e Educação. SP, Brasiliense.Papert, S.M (1999). Jean Piaget. TIME International March 29, 1999, Special Issue, The Greatest Minds of the Century.Perkins, David N.; Schwartz, Judah L.; West, Mary M. & Wiske, Martha S.(1995, eds.). Software goes to school: teaching for understanding with new technologies. NY, Oxford.Shattuck, R. (1998), Conhecimento Proibido: de Prometeu à Pornografia. São Paulo, Companhia das Letras.

Um comentário:

  1. muito pertinente, quando você se refere aos problemas das escolas publicas, que ainda estão muito atrasadas no que tange à formação de professores e infra estrutura. Fala-s emuito em inclusão digital, ai vc para pra refletir, tenho que fazer a minha aprte e dar o primeiro passo, esta é a minha parte, alguém tem que fazer o seu, para fazer andar e valer todos estes discursos.

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